Tu és Pedro, e eu te darei as chaves do Reino dos céus.
Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 16,13-20
Na festa da Sagrada Família e Jubileu da Família, o papa Francisco presidiu a celebração eucarística na Basílica de São Pedro. Em sua homilia, o pontífice comentou as leituras do dia para ressaltar a importância do elo familiar na “peregrinação da vida”. Seja na primeira, seja na segunda leitura, os pais peregrinam rumo ao templo junto de seus filhos. Confira a homilia na íntegra.
As leituras bíblicas, que acabamos de ouvir, apresentam-nos a imagem de duas famílias que realizam a sua peregrinação à casa de Deus. Elcana e Ana levam o filho Samuel ao templo de Silo e consagram-no ao Senhor (cf. 1 Sm 1,20-22.24-28). E da mesma forma José e Maria, juntamente com Jesus, vão como peregrinos a Jerusalém pela festa da Páscoa (cf. Lc 2,41-52).
Muitas vezes os nossos olhos deparam com os peregrinos que vão a santuários e lugares queridos da devoção popular. Mesmo nestes dias, há muitos que se puseram a caminho para penetrar na Porta Santa aberta em todas as catedrais do mundo e também em muitos santuários. Mas o fato mais interessante posto em evidência pela Palavra de Deus é a peregrinação ser feita pela família inteira: pai, mãe e filhos vão, todos juntos, à casa do Senhor a fim de santificar a festa pela oração. É uma lição importante oferecida também às nossas famílias. Mais, podemos dizer que a vida da família é um conjunto de pequenas e grandes peregrinações.
Peregrinar é educar para a oração
Por exemplo, como nos faz bem pensar que Maria e José ensinaram Jesus a rezar as orações! E isso é uma peregrinação, a peregrinação da educação para a oração. E também nos faz bem saber que, durante o dia, rezavam juntos; depois, ao sábado, iam juntos à sinagoga ouvir as Sagradas Escrituras da Lei e dos Profetas e louvar o Senhor com todo o povo! E que certamente rezaram durante a peregrinação para Jerusalém, cantando estas palavras do Salmo: “Que alegria, quando me disseram: “Vamos para a casa do Senhor!” Os nossos passos detêm-se às tuas portas, ó Jerusalém” (122/121, 1-2)!
Como é importante, para as nossas famílias, caminhar juntos e ter a mesma meta em vista! Sabemos que temos um percurso comum a realizar; uma estrada, onde encontramos dificuldades, mas também momentos de alegria e consolação. Nesta peregrinação da vida, partilhamos também os momentos da oração. Que poderá haver de mais belo, para um pai e uma mãe, do que abençoar os seus filhos ao início do dia e na sua conclusão? Fazer na sua fronte o sinal da cruz, como no dia do Batismo? Não será essa, porventura, a oração mais simples que os pais fazem pelos seus filhos? Abençoá-los, isto é, confiá-los ao Senhor, como fizeram Elcana e Ana, José e Maria, para que seja Ele a proteção e amparo deles nos vários momentos do dia? Como é importante, para a família, encontrar-se também para um breve momento de oração antes de tomar as refeições juntos, a fim de agradecer ao Senhor por esses dons e aprender a partilhar o que se recebeu com quem está mais necessitado. Trata-se sempre de pequenos gestos, mas expressam o grande papel formativo que a família possui na peregrinação de todos os dias.
A peregrinação continua em casa
No final daquela peregrinação, Jesus voltou para Nazaré e era submisso a seus pais (cf. Lc 2,51). Também essa imagem contém um ensinamento estupendo para as nossas famílias; é que a peregrinação não termina quando se alcança a meta do santuário, mas quando se volta para casa e se retoma a vida de todos os dias, fazendo valer os frutos espirituais da experiência vivida. Sabemos o que Jesus então fizera: em vez de voltar para casa com os seus, ficou em Jerusalém no Templo, causando uma grande aflição a Maria e a José que não O encontravam. Provavelmente, por esta sua “escapadela”, também Jesus teve que pedir desculpa a seus pais (o Evangelho não diz, mas acho que podemos supô-lo). Aliás, na pergunta de Maria, subjaz de certo modo uma repreensão, ressaltando a preocupação e angústia dela e de José. No regresso a casa, com certeza Jesus uniu-se estreitamente a eles, para lhes demonstrar toda a sua afeição e obediência. Fazem parte da peregrinação da família também esses momentos que, com o Senhor, se transformam em oportunidades de crescimento, em ocasiões de pedir e receber o perdão, de demonstrar amor e obediência.
No Ano da Misericórdia, possa cada família cristã tornar-se um lugar privilegiado dessa peregrinação em que se experimenta a alegria do perdão. O perdão é a essência do amor, que sabe compreender o erro e pôr-lhe remédio. Ai de nós se Deus não nos perdoasse! É no seio da família que as pessoas são educadas para o perdão, porque se tem a certeza de ser compreendidas e amparadas, não obstante os erros que se possam cometer.
Não percamos a confiança na família! É bom abrir sempre o coração uns aos outros, sem nada esconder. Onde há amor, também há compreensão e perdão. A vós todas, queridas famílias, confio essa peregrinação doméstica de todos os dias, essa missão tão importante de que, hoje, o mundo e a Igreja têm mais necessidade do que nunca.
Homilia da Santa Missa para as Famílias. Basílica Vaticana, 27 de dezembro de 2015
Irmãos e irmãs,
Nesses dias de Natal põe-se diante de nós o Menino Jesus. Estou convicto de que nos vossos lares ainda muitas famílias fazem o presépio, dando continuidade a essa bonita tradição, que remonta a São Francisco de Assis, e que conserva vivo nos nossos corações o mistério do Deus que se faz homem.
A devoção ao Menino Jesus é muito difundida. Numerosos santos e santas cultivaram-na na sua oração de todos os dias, com o desejo de modelar a própria vida segundo a do Menino Jesus. Penso, de modo especial, em santa Teresa de Lisieux que, como monja carmelita, tinha o nome de Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face. Ela – que é inclusive Doutora da Igreja – soube viver e testemunhar aquela “infância espiritual” que se assimila precisamente através da meditação, na escola da Virgem Maria, da humildade de Deus que por nós se fez pequenino. E esse é um mistério grandioso, Deus é humilde! Nós, que somos orgulhosos, cheios de vaidade e temos uma alta consideração de nós mesmos, nada somos! Ele, o grande, é humilde e faz-se menino. Trata-se de um verdadeiro mistério! Deus é humilde. E isso é bonito!
Houve um tempo em que, na Pessoa divino-humana de Cristo, Deus foi um menino, e isso deve ter um significado peculiar para a nossa fé. É verdade que a sua morte na cruz e a sua ressurreição são a máxima expressão do seu amor redentor, mas não nos esqueçamos de que toda a sua vida terrena é revelação e ensinamento. No período de Natal nós recordamos a sua infância. Para crescer na fé, deveríamos contemplar mais frequentemente o Menino Jesus. Sem dúvida, nada conhecemos daquele seu período. As raras indicações de que dispomos fazem referência à imposição do nome, oito dias depois do seu nascimento, e à sua apresentação no Templo (cf. Lc 2,21-28); e além disso à visita dos Magos, com a consequente fuga para o Egito (cf. Mt 2,1-23). Depois, há um grande salto até a idade de doze anos quando, com Maria e José, vai em peregrinação a Jerusalém para a Páscoa e, em vez de voltar com os seus pais, detém-se no Templo a falar com os doutores da lei.
Como se vê, sabemos pouco do Menino Jesus, mas poderemos aprender muito dele se contemplarmos a vida das crianças. É um bonito hábito que os pais e os avós têm de olhar para as crianças, para aquilo que elas fazem.
Jesus está no meio de nós
Antes de tudo, descobrimos que as crianças querem a nossa atenção. Elas devem estar no centro, por quê? Porque são orgulhosas? Não! Porque têm a necessidade de se sentir protegidas. Também nós temos a necessidade de pôr Jesus no centro da nossa vida e de saber, embora pareça paradoxal, que temos a responsabilidade de protegê-lo. Ele deseja estar no nosso colo, quer receber cuidados e poder fixar o seu olhar no nosso. Além disso, fazer sorrir o Menino Jesus para lhe demonstrar o nosso amor e a nossa alegria porque Ele está no meio de nós. O seu sorriso é sinal do amor que nos confere a certeza de sermos amados. Por fim, as crianças gostam de brincar. Mas deixar que uma criança brinque significa abandonar a nossa lógica para entrar na dela. Se quisermos que ela se divirta, é necessário entender do que gosta e não ser egoístas, nem levá-la a fazer o que nos agrada. Isso é um ensinamento para nós. Diante de Jesus, somos chamados a abandonar a nossa pretensão de autonomia, – e este é o núcleo do problema: a nossa pretensão de autonomia – para aceitar, ao contrário, a verdadeira forma de liberdade, que consiste em conhecer quem está à nossa frente e servi-lo. Ele, Menino, é o Filho de Deus que vem para nos salvar. Veio entre nós para nos mostrar o rosto do Pai, rico de amor e de misericórdia. Portanto, abracemos o Menino Jesus, pondo-nos a seu serviço: Ele é fonte de amor e de serenidade. E hoje, quando voltarmos para casa, será bom aproximar-nos do presépio, beijar o Menino Jesus e dizer: “Jesus, quero ser humilde como Tu, humilde como Deus”, e pedir-lhe essa graça!
A partir desse mês, o papa Francisco começou a apresentar as tradicionais intenções de oração por videomensagem. A primeira já se concretizou no último dia 6. Trata-se de uma nova e inédita iniciativa do Apostolado de Oração. Nas mensagens, a serem divulgadas uma vez por mês também nas redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram, Youtube), o pontífice falará em espanhol, com subtítulos em diversas línguas. A idealização dos vídeos – realizados em colaboração com o Centro Televisivo Vaticano - é da agência de comunicação “La Machi”. Sobre essa iniciativa, a Rádio Vaticano entrevistou o sacerdote jesuíta Frederic Fornos, Diretor Internacional do Apostolado da Oração, que destacou. “O Apostolado da Oração é a rede mundial de oração do papa; é uma rede de oração a serviço dos desafios da humanidade e da missão da Igreja, porque são essas as intenções mensais do Santo Padre, que nos ajudam a conhecer melhor os grandes desafios do mundo de hoje. São desafios que nos auxiliam a estarmos muito mais envolvidos no mundo, em espírito – como dizia o papa Francisco por ocasião do Dia Mundial da Paz – de solidariedade, misericórdia e compaixão pelo nosso mundo. Recordo de uma mensagem do papa na Quaresma, muito forte, e que dizia assim: “Somos saturados de notícias e de imagens desconcertantes que nos narram os sofrimentos humanos e sentimos, ao mesmo tempo, toda a nossa incapacidade de intervir”.
Apresentamos um trecho do longo discurso do papa Francisco aos movimentos populares reunidos em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, em julho de 2015, no qual o pontífice relata as situações de injustiça que padecem os excluídos em todo o mundo. Segundo Francisco, “mudanças nos processos sociais” não dependem apenas das grandes potências, nem somente dos poderosos, mas da capacidade de organização de todos, inclusive os oprimidos.
A Bíblia lembra-nos que Deus escuta o clamor do seu povo e também eu quero voltar a unir a minha voz à vossa: terra, teto e trabalho para todos os nossos irmãos e irmãs. Disse-o e repito: são direitos sagrados. Vale a pena, vale a pena lutar por eles. Que o clamor dos excluídos seja escutado na América Latina e em toda a terra.
Comecemos por reconhecer que precisamos duma mudança. Quero esclarecer, para que não haja mal-entendidos, que falo dos problemas comuns de todos os latino-americanos e, em geral, de toda a humanidade. Problemas, que têm uma matriz global e que atualmente nenhum Estado pode resolver por si mesmo. Feito esse esclarecimento, proponho que nos coloquemos estas perguntas:
– Nós reconhecemos que as coisas não andam bem num mundo onde há tantos camponeses sem terra, tantas famílias sem teto, tantos trabalhadores sem direitos, tantas pessoas feridas na sua dignidade?
– Nós reconhecemos que as coisas não andam bem, quando explodem tantas guerras sem sentido e a violência fratricida se apodera até dos nossos bairros? Nós reconhecemos que as coisas não andam bem, quando o solo, a água, o ar e todos os seres da criação estão sob ameaça constante?
Então digamo-lo sem medo: Precisamos e queremos uma mudança.
Pergunto-me se somos capazes de reconhecer que essas realidades destrutivas correspondem a um sistema que se tornou global. Nós reconhecemos que esse sistema impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social nem na destruição da natureza?
Se é assim – insisto – digamo-lo sem medo: Queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. Esse sistema é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos... E nem sequer o suporta a Terra, a irmã Mãe Terra, como dizia São Francisco.
Respostas globais para os problemas locais
Queremos uma mudança nas nossas vidas, nos nossos bairros, no vilarejo, na nossa realidade mais próxima; mas uma mudança que toque também o mundo inteiro, porque hoje a interdependência global requer respostas globais para os problemas locais. A globalização da esperança, que nasce dos povos e cresce entre os pobres, deve substituir essa globalização da exclusão e da indiferença.
Que posso fazer eu, recolhedor de papelão, catador de lixo, limpador, reciclador, frente a tantos problemas, se mal ganho para comer? Que posso fazer eu, artesão, vendedor ambulante, carregador, trabalhador irregular, se não tenho sequer direitos laborais? Que posso fazer eu, camponesa, indígena, pescador que dificilmente consigo resistir à propagação das grandes corporações? Que posso fazer eu, a partir da minha comunidade, do meu barraco, da minha povoação, da minha favela, quando sou diariamente discriminado e marginalizado? Que pode fazer aquele estudante, aquele jovem, aquele militante, aquele missionário que atravessa as favelas e os paradeiros com o coração cheio de sonhos, mas quase sem nenhuma solução para os meus problemas? Muito! Podem fazer muito. Vós, os mais humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos “3 T” (trabalho, teto, terra), e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudança nacionais, regionais e mundiais. Não se acanhem! Vós sois semeadores de mudança.
No coração, tenhamos sempre a Virgem Maria, uma jovem humilde duma pequena aldeia perdida na periferia dum grande império, uma mãe sem teto que soube transformar um curral de animais na casa de Jesus com uns pobres paninhos e uma montanha de ternura. Maria é sinal de esperança para os povos que sofrem dores de parto até que brote a justiça. Rezo à Virgem do Carmo, padroeira da Bolívia, para fazer com que este nosso Encontro seja fermento de mudança.
A mudança na capacidade de organização das comunidades
Gostaria que refletíssemos juntos sobre algumas tarefas importantes neste momento histórico, pois queremos uma mudança positiva em benefício de todos os nossos irmãos e irmãs. Disso estamos certos! Queremos uma mudança que se enriqueça com o trabalho conjunto de governos, movimentos populares e outras forças sociais.
A primeira tarefa é pôr a economia ao serviço dos povos.
Os seres humanos e a natureza não devem estar a oserviço do dinheiro. Digamos NÃO a uma economia de exclusão e desigualdade, em que o dinheiro reina em vez de servir. Essa economia mata. Essa economia exclui. Essa economia destrói a Mãe Terra.
A segunda tarefa é unir os nossos povos no caminho da paz e da justiça.
Os povos do mundo querem ser artífices do seu próprio destino. Querem caminhar em paz para a justiça. Não querem tutelas nem interferências, onde o mais forte subordina o mais fraco. Querem que a sua cultura, o seu idioma, os seus processos sociais e tradições religiosas sejam respeitados.
A terceira tarefa, e talvez a mais importante que devemos assumir hoje, é defender a Mãe Terra. A casa comum de todos nós está a ser saqueada, devastada, vexada impunemente. A covardia em defendê-la é um pecado grave. Peço-vos, em nome de Deus, que defendais a Mãe Terra. Sobre esse assunto, expressei-me devidamente na carta encíclica Laudato si’.
Para concluir, quero dizer-lhes novamente: O futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos povos; na sua capacidade de se organizarem e também nas suas mãos que regem, com humildade e convicção, esse processo de mudança. Estou convosco. Digamos juntos do fundo do coração: nenhuma família sem teto, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhum povo sem soberania, nenhuma pessoa sem dignidade, nenhuma criança sem infância, nenhum jovem sem possibilidades, nenhum idoso sem uma veneranda velhice. Continuai com a vossa luta e, por favor, cuidai bem da Mãe Terra.
Amados irmãos e irmãs,
Hoje começamos as catequeses sobre a misericórdia segundo a perspectiva bíblica, de maneira a aprender a misericórdia, ouvindo aquilo que o próprio Deus nos ensina mediante a sua Palavra. Comecemos a partir do Antigo Testamento, que nos prepara e nos conduz à plena revelação de Jesus Cristo, em quem se manifesta a misericórdia do Pai.
Na Sagrada Escritura, o Senhor é apresentado como “Deus misericordioso”. Este é o seu nome, através do qual Ele nos revela, por assim dizer, a sua face e o seu coração. Como narra o Livro do Êxodo, revelando-se a Moisés, Ele mesmo assim se define: “Deus compassivo e misericordioso, lento para a ira, rico em bondade e em fidelidade” (34, 6). Inclusive noutros textos voltamos a encontrar essa fórmula, com algumas variações, não obstante se ponha sempre a ênfase na misericórdia e no amor de Deus, que nunca se cansa de perdoar (cf. Gn 4, 2; Gl 2, 13; Sl 86, 15; 103, 8; 145, 8; Ne 9, 17). Vejamos juntos, uma por uma, essas palavras da Sagrada Escritura que nos falam de Deus.
O Senhor é “misericordioso”: esse vocábulo evoca uma atitude de ternura, como a de uma mãe pelo seu filho. Com efeito, o termo hebraico usado pela Bíblia leva a pensar nas vísceras, ou então no ventre materno. Por isso, a imagem que sugere é a de um Deus que se comove e sente ternura por nós, como uma mãe quando pega o seu filho ao colo, unicamente desejosa de amar, proteger e ajudar, pronta a doar tudo, até a si mesma. Essa é a imagem que esse termo sugere. Portanto, um amor que se pode definir, no bom sentido, “visceral”.
Depois, está escrito que o Senhor é “compassivo”, no sentido que concede a graça, tem compaixão e, na sua grandeza, se debruça sobre quantos são frágeis e pobres, sempre pronto a acolher, compreender e perdoar. É como o pai da parábola tirada do Evangelho de Lucas (cf. Lc 15,11-32): um pai que não se fecha no ressentimento pelo abandono do filho mais novo, mas, ao contrário, continua a esperar por ele — foi ele quem o gerou! — e depois corre ao seu encontro e abraça-o, nem sequer o deixa terminar a sua confissão — como se lhe tapasse a boca — tão grandes são o amor e a alegria por tê-lo reencontrado; e em seguida vai chamar também o filho mais velho, que se sente indignado e não quer festejar, o filho que permaneceu sempre em casa, mas vivia mais como um servo do que como um filho, e o pai debruça-se inclusive sobre ele, convida-o a entrar e procura abrir o seu coração ao amor, a fim de que ninguém seja excluído da festa da misericórdia. A misericórdia é uma festa!
Desse Deus misericordioso também se diz que é “lento para a ira”, literalmente, tem um “longo respiro”, ou seja, o amplo respiro da longanimidade e da capacidade de suportar. Deus sabe esperar, os seus tempos não são os tempos impacientes dos homens; Ele é como o sábio agricultor que sabe esperar, dá tempo à boa semente para crescer, não obstante o joio (cf. Mt 13,24-30).
O amor e a fidelidade de Deus não têm limites
E finalmente, o Senhor proclama-se “rico em bondade e em fidelidade”. Como é bonita essa definição de Deus! Ela contém tudo. Porque Deus é grande e poderoso, mas essa grandeza e poder revelam-se no amor a nós, que somos tão pequeninos, tão incapazes. A palavra “amor”, aqui utilizada, indica o carinho, a graça, a bondade. Não se trata do amor das telenovelas... É o amor que dá o primeiro passo, que não depende dos méritos humanos, mas de uma imensa gratuidade. É a solicitude divina que nada pode impedir, nem sequer o pecado, porque ela sabe ir mais além do pecado, derrotar o mal e perdoá-lo.
Uma “fidelidade” sem limites: eis a derradeira palavra da revelação de Deus a Moisés. A fidelidade de Deus nunca esmorece, porque o Senhor é o Guardião que, como recita o Salmo, não adormece, mas vigia continuamente sobre nós para nos levar à vida:
“Ele não permitirá que os teus pés vacilem;
não adormecerá aquele que te guarda.
Não, não dormirá, não cairá no sono
a sentinela de Israel.
[...].
O Senhor proteger-te-á de todo o mal;
Ele velará sobre a tua alma.
O Senhor guardará os teus passos,
agora e para sempre” (Sl 121,3-4.7-8).
Esse Deus misericordioso é fiel na sua misericórdia e São Paulo diz algo muito bonito: ainda que tu não lhe sejas fiel, contudo Ele permanecer-te-á fiel, porque não pode renegar-se a si mesmo. A fidelidade na misericórdia é precisamente o ser de Deus. E por isso Deus é totalmente e sempre confiável. A sua presença é firme e estável. Eis em que consiste a certeza da nossa fé. E então, neste Jubileu da Misericórdia, confiemo-nos inteiramente a Ele, e experimentemos a alegria de ser amados por esse “Deus compassivo e misericordioso, lento para a ira, rico em bondade e em fidelidade”.
Audiência Geral do papa Francisco. Sala Paulo VI, 13 de janeiro de 2016
“Prefiro a misericórdia ao sacrifício” (Mt 9,13). As obras de misericórdia no caminho jubilar
1. Maria, ícone duma Igreja que evangeliza porque evangelizada
Na Bula de proclamação do Jubileu, fiz o convite para que “a Quaresma deste Ano Jubilar seja vivida mais intensamente como tempo forte para celebrar e experimentar a misericórdia de Deus” (Misericordiӕ Vultus, 17). Com o apelo à escuta da Palavra de Deus e à iniciativa “24 horas para o Senhor”, quis sublinhar a primazia da escuta orante da Palavra, especialmente a palavra profética. Com efeito, a misericórdia de Deus é um anúncio ao mundo; mas cada cristão é chamado a fazer pessoalmente experiência de tal anúncio. Por isso, no tempo da Quaresma, enviarei os Missionários da Misericórdia a fim de serem, para todos, um sinal concreto da proximidade e do perdão de Deus.
2. A aliança de Deus com os homens: uma história de misericórdia
O mistério da misericórdia divina desvenda-se no decurso da história da aliança entre Deus e o seu povo Israel. Na realidade, Deus mostra-Se sempre rico de misericórdia, pronto em qualquer circunstância a derramar sobre o seu povo uma ternura e uma compaixão viscerais, sobretudo nos momentos mais dramáticos quando a infidelidade quebra o vínculo do pacto e se requer que a aliança seja ratificada de maneira mais estável na justiça e na verdade. Encontramo-nos aqui perante um verdadeiro e próprio drama de amor, no qual Deus desempenha o papel de pai e marido traído, enquanto Israel desempenha o de filho/filha e esposa infiéis. São precisamente as imagens familiares – como no caso de Oseias (cf. Os 1-2) – que melhor exprimem até que ponto Deus quer ligar-Se ao seu povo.
Este drama de amor alcança o seu ápice no Filho feito homem. N’Ele, Deus derrama a sua misericórdia sem limites até ao ponto de fazer d’Ele a Misericórdia encarnada (cf. Misericordiӕ Vultus, 8). Na realidade, Jesus de Nazaré enquanto homem é, para todos os efeitos, filho de Israel. E o é ao ponto de encarnar aquela escuta perfeita de Deus que se exige a cada judeu pelo Shemà, fulcro ainda hoje da aliança de Deus com Israel: “Escuta, Israel! O Senhor é nosso Deus; o Senhor é único! Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças” (Dt 6,4-5).
A Misericórdia “exprime o comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe uma nova possibilidade de se arrepender, converter e acreditar” (Misericordiӕ Vultus, 21), restabelecendo precisamente assim a relação com Ele. E, em Jesus crucificado, Deus chega ao ponto de querer alcançar o pecador no seu afastamento mais extremo, precisamente lá onde ele se perdeu e afastou d'Ele. E faz isso na esperança de assim poder finalmente comover o coração endurecido da sua Esposa.
3. As obras de misericórdia
A misericórdia de Deus transforma o coração do homem e faz-lhe experimentar um amor fiel, tornando-o assim, por sua vez, capaz de misericórdia. É um milagre sempre novo que a misericórdia divina possa irradiar-se na vida de cada um de nós, estimulando-nos ao amor do próximo e animando aquilo que a tradição da Igreja chama as obras de misericórdia corporal e espiritual. Essas recordam-nos que a nossa fé se traduz em atos concretos e cotidianos, destinados a ajudar o nosso próximo no corpo e no espírito e sobre os quais havemos de ser julgados: alimentá-lo, visitá-lo, confortá-lo, educá-lo. Por isso, expressei o desejo de que “o povo cristão reflita, durante o Jubileu, sobre as obras de misericórdia corporal e espiritual. Será uma maneira de acordar a nossa consciência, muitas vezes adormecida perante o drama da pobreza, e de entrar cada vez mais no coração do Evangelho, onde os pobres são os privilegiados da misericórdia divina” (Ibid., 15).
A Quaresma deste Ano Jubilar é um tempo favorável para todos poderem, finalmente, sair da própria alienação existencial, graças à escuta da Palavra e às obras de misericórdia. Se, por meio das obras corporais, tocamos a carne de Cristo nos irmãos e irmãs necessitados de ser nutridos, vestidos, alojados, visitados, as obras espirituais tocam mais diretamente o nosso ser de pecadores: aconselhar, ensinar, perdoar, admoestar, rezar. Por isso, as obras corporais e as espirituais nunca devem ser separadas. Com efeito, é precisamente tocando, no miserável, a carne de Jesus crucificado que o pecador pode receber, em dom, a consciência de ser ele próprio um pobre mendigo. Por essa estrada, também os “soberbos”, os “poderosos” e os “ricos”, de que fala o Magnificat, têm a possibilidade de aperceber-se que são, imerecidamente, amados pelo Crucificado, morto e ressuscitado também por eles.
Não percamos este tempo de Quaresma favorável à conversão! Pedimo-lo pela intercessão materna da Virgem Maria, a primeira que, diante da grandeza da misericórdia divina que Lhe foi concedida gratuitamente, reconheceu a sua pequenez (cf. Lc 1,48), confessando-Se a humilde serva do Senhor (cf. Lc 1,38).
Mensagem do Santo Padre para a Quaresma 2016. Vaticano, 4 de Outubro de 2015, Festa de S. Francisco de Assis
Hoje, diante do nosso olhar, há um fato simples, humilde e grande: Jesus é levado por Maria e José ao templo de Jerusalém. É um menino como muitos, como todos, mas é único: é o Unigênito vindo para todos. Esse Menino nos trouxe a misericórdia e a ternura de Deus: Jesus é a face da Misericórdia do Pai. Esse é o ícone que o Evangelho nos oferece no final do Ano da Vida Consagrada, um ano vivido com tanto entusiasmo. Esse, como um rio, agora conflui no mar da misericórdia, neste imenso mistério de amor que estamos vivendo com o Jubileu extraordinário.
A festa de hoje, sobretudo no Oriente, é chamada festa do encontro. Com efeito, no Evangelho que foi proclamado, vemos vários encontros (cfr Lc 2,22-40). No templo, Jesus vem a nosso encontro e nós vamos a seu encontro. Contemplamos o encontro com o velho Simeão, que representa a espera fiel de Israel e a exultação do coração para a realização das antigas promessas. Admiramos também o encontro com a idosa profetisa Ana, que, ao ver o Menino, exulta de alegria e louva a Deus. Simeão e Ana são a espera e a profecia, Jesus é a novidade e a realização: Ele se apresenta a nós como a perene surpresa de Deus; nesse Menino nascido para todos se encontram o passado, feito de memória e de promessa, e o futuro, repleto de esperança.
Podemos ver nisso o início da vida consagrada. Os consagrados e as consagradas são chamados, antes de tudo, a serem homens e mulheres do encontro. A vocação, de fato, não se inspira num nosso projeto pensado de “maneira estratégica”, mas numa graça do Senhor que nos alcança, através de um encontro que transforma a vida. Quem realmente encontra Jesus não pode permanecer como antes. Ele é a novidade que faz novas todas as coisas. Quem vive esse encontro se torna testemunha e torna possível o encontro para os outros; e se faz também promotor da cultura do encontro, evitando a autorreferencialidade que nos faz permanecer fechados em nós mesmos.
Chamados ao estado permanente de missão
O trecho da Carta aos Hebreus, que ouvimos, nos recorda que o próprio Jesus, para vir ao nosso encontro, não hesitou em compartilhar a nossa condição humana: “Visto que os filhos têm em comum a carne e o sangue, também Jesus participou da mesma condição” (v. 14). Jesus não nos salvou “de fora”, não permaneceu fora do nosso drama, mas quis compartilhar a nossa vida. Os consagrados e as consagradas são chamados a ser sinal concreto e profético dessa proximidade de Deus, dessa compartilha com a condição de fragilidade, de pecado e de feridas do homem do nosso tempo. Todas as formas de vida consagrada, cada uma segundo as suas características, são chamadas a estar em estado permanente de missão, compartilhando “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, dos pobres, sobretudo, e de todos os que sofrem” (Gaudium et spes, 1).
O Evangelho nos diz que “O pai e a mãe de Jesus estavam admirados com o que diziam a respeito dele” (v. 33). José e Maria custodiam a admiração por este encontro repleto de luz e de esperança para todos os povos. E também nós, como cristãos e como pessoas consagradas, somos custódios da admiração. Uma admiração que pede para nos renovarmos sempre; ai da rotina na vida espiritual; ai da cristalização dos nossos carismas numa doutrina abstrata: os carismas dos fundadores – como disse outras vezes – não devem ser sigilados numa garrafa, não são peças de museu. Os nossos fundadores foram movidos pelo Espírito e não tiveram medo de sujar as mãos com a vida cotidiana, com os problemas das pessoas, percorrendo com coragem as periferias geográficas e existenciais. Não se detiveram diante dos obstáculos e das incompreensões dos outros, porque mantiveram no coração a admiração pelo encontro com Cristo. Não domesticaram a graça do Evangelho; tiveram sempre no coração uma inquietação saudável pelo Senhor, um desejo ardente de levá-lo aos outros, como fizeram Maria e José no templo. Também nós somos chamados hoje a realizar escolhas proféticas e corajosas.
Por fim, com a festa de hoje aprendemos a viver a gratidão pelo encontro com Jesus e pelo dom da vocação à vida consagrada. Agradecer, ação de graças: Eucaristia. Como é belo quando encontramos o rosto feliz de pessoas consagradas, talvez já com idade avançada como Simeão ou Ana, contentes e cheios de gratidão pela própria vocação. Essa é uma palavra que pode sintetizar tudo aquilo que vivemos neste Ano da Vida Consagrada: gratidão pelo dom do Espírito Santo, que sempre anima a Igreja através dos diversos carismas.
O Evangelho se conclui com esta expressão: “O menino crescia, tornava-se robusto, enchia-se de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele” (v. 40). Possa o Senhor Jesus, pela materna intercessão de Maria, crescer em nós, e aumentar em cada um o desejo do encontro, a custódia da admiração e a alegria da gratidão. Então outros se sentirão atraídos pela sua luz, e poderão encontrar a misericórdia do Pai.
Homilia da Missa na conclusão do Ano da Vida Consagrada - texto integral. Dia 2 de fevereiro de 2016
Queridos irmãos e irmãs,
A Sagrada Escritura apresenta-nos Deus como misericórdia infinita, mas também como justiça perfeita. Como conciliar os dois aspectos? De que modo se articula a realidade da misericórdia com as exigências da justiça? Poderia parecer que são duas realidades que se contradizem; na verdade não é assim, porque é precisamente a misericórdia de Deus que leva ao cumprimento da justiça autêntica. Mas de que justiça se trata?
Se pensarmos na administração legal da justiça, vemos que quem se considera vítima de um abuso, dirige-se ao juiz no tribunal e pede que seja feita justiça. Trata-se de uma justiça retributiva, que inflige uma pena ao culpado, segundo o princípio que a cada um deve ser dado o que lhe é devido. Como recita o livro dos Provérbios: “Quem pratica a justiça está destinado à vida, mas quem persegue o mal está destinado à morte” (cf. 11, 19). Também Jesus fala sobre isso na parábola da viúva que repetidamente ia ter com o juiz e lhe pedia: “Faz-me justiça contra o meu adversário” (cf. Lc 18, 3).
Contudo, esse caminho não leva à verdadeira justiça porque na realidade não vence o mal, simplesmente limita-o. Mas é só respondendo com o bem que o mal pode ser deveras vencido.
Deus abre-se ao perdão para a salvação de todos
Eis então outro modo de fazer justiça que a Bíblia nos apresenta como via mestra a percorrer. Trata-se de um procedimento que evita o recurso ao tribunal e prevê que a vítima se dirija diretamente ao culpado para o exortar à conversão, ajudando-o a compreender que está a praticar o mal, fazendo apelo à sua consciência. Deste modo, finalmente vendo e reconhecendo o próprio erro, ele pode abrir-se ao perdão que a parte lesada lhe está a oferecer. E isso é bom: depois da persuasão do que é o mal, o coração abre-se ao perdão que lhe é oferecido. Esse é o modo de resolver os contrastes nas famílias, nas relações entre esposos ou entre pais e filhos, onde o ofendido ama o culpado e deseja salvar a relação que o une ao outro. Não se interrompa a relação, aquele relacionamento.
Certamente, é um caminho difícil. Requer que quem recebeu a ofensa esteja pronto a perdoar e deseje a salvação e o bem de quem o ofendeu. Mas só assim a justiça pode triunfar, porque se o culpado reconhecer o mal praticado e deixar de o fazer, eis que o mal já não existe, e aquele que era injusto torna-se justo, porque foi perdoado e ajudado a reencontrar a via do bem. E isso tem a ver precisamente com o perdão, com a misericórdia.
É assim que Deus age em relação a nós, pecadores. O Senhor oferece-nos continuamente o seu perdão e ajuda-nos a acolhê-lo e a tomar consciência do nosso mal para nos podermos libertar dele. Porque Deus não quer a nossa condenação, mas a nossa salvação. Deus não deseja a condenação de ninguém! Algum de vós poderia perguntar-me: “Mas Padre, Pilatos merecia a condenação? Deus queria isso?” — Não! Deus queria salvar Pilatos e também Judas, todos! O Senhor da misericórdia queria salvar todos! O problema é deixar que Ele entre no coração. Todas as palavras dos profetas são um apelo apaixonado e cheio de amor que procura a nossa conversão. Eis o que o Senhor diz através do profeta Ezequiel: “Porventura comprazer-me-ei com a morte do pecador [...] ou com a sua conversão, de maneira que ele tenha vida?” (cf. 18, 23; e 33, 11), é isso que agrada a Deus!
Este é o coração de Deus, um coração de Pai que ama e deseja que os seus filhos vivam no bem e na justiça e portanto vivam em plenitude e sejam felizes. Um coração de Pai que vai além do nosso pequeno conceito de justiça para nos abrir aos horizontes infinitos da misericórdia. Um coração de Pai que não nos trata segundo os nossos pecados e não nos repreende, nem conserva a sua ira, como diz o Salmo (cf. 103, 9-10).
É precisamente um coração de pai que queremos encontrar quando vamos ao confessionário. Talvez nos diga algo para nos ajudar a entender melhor o mal, mas ao confessionário vamos todos para encontrar um pai que nos ajude a mudar de vida; um pai que nos dê a força para continuar; um pai que nos perdoe em nome de Deus. E por isso ser confessor é uma responsabilidade tão grande, porque o filho, a filha que vai ter contigo e espera encontrar um pai. E tu, sacerdote, que estás ali no confessionário, estás no lugar do Pai que faz justiça com a sua misericórdia.
Audiência Geral do papa Francisco. Praça São Pedro, 3 de fevereiro de 2016
Estimados irmãos e irmãs, bom caminho de Quaresma!
É bom e também significativo realizar esta audiência precisamente nesta Quarta-Feira de Cinzas. Começamos o caminho da Quaresma e hoje meditaremos sobre a antiga instituição do “jubileu”; é antiga, já testemunhada na Sagrada Escritura. Encontramo-la de modo particular no Livro do Levítico, que a apresenta como um momento culminante da vida religiosa e social do povo de Israel.
A cada 50 anos, “no dia da expiação” (Lv 25, 9), quando a misericórdia do Senhor era invocada sobre todo o povo, o som da trombeta anunciava um grande acontecimento de libertação. Com efeito, no Livro do Levítico lemos: “Santificareis o quinquagésimo ano e anunciareis a liberdade na terra para todos os seus habitantes. Será o vosso jubileu. Voltareis cada um para a própria terra e para a sua família [...] Nesse ano jubilar, cada um voltará à sua propriedade” (25, 10-13). Segundo essas disposições, se alguém tivesse sido forçado a vender a sua terra ou a própria casa, no jubileu podia voltar a apoderar-se delas; e se alguém tivesse contraído dívidas e, impossibilitado de pagá-las, tivesse sido obrigado a pôr-se ao serviço do credor, podia voltar livremente à própria família e reaver todas as suas propriedades.
Era uma espécie de “perdão geral”, com o qual se permitia que todos voltassem à situação originária, com o cancelamento de todas as dívidas, a restituição da terra e a possibilidade de gozar novamente da liberdade, própria dos membros do povo de Deus. Um povo “santo”, onde prescrições como aquela do jubileu serviam para combater a pobreza e a desigualdade, garantindo uma vida digna para todos e uma distribuição equitativa da terra onde habitar e da qual haurir o próprio sustento. A ideia central é que a terra pertence originariamente a Deus e foi confiada aos homens (cf. Gn 1, 28-29), e por isso ninguém pode reivindicar para si a sua posse exclusiva, criando situações de desigualdade. Hoje podemos reconsiderar isso; cada qual no seu coração pense se possui demasiados bens. Mas por que motivo não os deixar a quantos nada possuem? Dez por cento, cinquenta por cento... Digo: que o Espírito Santo inspire cada um de vós.
Misericórdia entre os homens
Com o jubileu, quem se tinha tornado pobre, voltava a dispor do necessário para viver, e quantos se tinham tornado ricos restituíam ao pobre aquilo de que se tinham apoderado. A finalidade era uma sociedade fundamentada na igualdade e na solidariedade, onde a liberdade, a terra e o dinheiro voltassem a tornar-se um bem para todos e não apenas para alguns, como hoje acontece, se não me engano... Mais ou menos, os números não são exatos, mas oitenta por cento das riquezas da humanidade estão nas mãos de menos de vinte por centro da população. É um jubileu — e digo-o, recordando a nossa história de salvação — para a conversão, para que o nosso coração se torne maior, mais generoso e mais filho de Deus, com mais amor. Digo-vos algo: se este desejo, se o jubileu não chegar aos bolsos, não será um verdadeiro jubileu. Entendestes? E isto está na Bíblia! Não é este papa que o inventa: está na Bíblia. A finalidade — como eu disse — era uma sociedade baseada na igualdade e na solidariedade, onde a liberdade, a terra e o dinheiro se tornassem um bem para todos, e não só para alguns. Com efeito, o jubileu tinha a função de ajudar o povo a viver uma fraternidade concreta, feita de ajuda recíproca. Podemos dizer que o jubileu bíblico era um «jubileu de misericórdia», porque era vivido na busca sincera do bem do irmão necessitado.
Nesta mesma perspectiva, também outras instituições e outras normas governavam a vida do povo de Deus, para que se pudesse experimentar a misericórdia do Senhor através da misericórdia dos homens. Naquelas normas encontramos indicações, ainda hoje válidas, que fazem meditar. Por exemplo, a lei bíblica prescrevia a oferta dos “dízimos” destinados aos levitas, encarregados do culto que não possuíam terrenos, e aos pobres, aos órfãos e às viúvas (cf. Dt 14, 22-29). Ou seja, previa-se que a décima parte da colheita, ou do lucro de outras atividades, fosse oferecida àqueles que não tinham tutela alguma e viviam em estado de necessidade, de modo a favorecer condições de relativa igualdade no interior de um povo, no qual todos deviam comportar-se como irmãos.
Abrir-se com coragem à partilha
À esmolaria apostólica chegam muitas cartas, com um pouco de dinheiro: “Esta é uma parte do meu salário, para ajudar o próximo”. E isso é bom; ajudar o próximo, as instituições de beneficência, os hospitais, as casas de repouso...; dar também aos forasteiros, a quantos são estrangeiros e estão de passagem. Jesus foi estrangeiro no Egito.
A Sagrada Escritura exorta com insistência a responder com generosidade aos pedidos de empréstimos, sem fazer cálculos mesquinhos e sem pretender juros impossíveis: “Se o teu irmão se tornar pobre junto de ti, e as suas mãos se enfraquecerem, sustentá-lo-ás, mesmo que se trate de um estrangeiro ou de um hóspede, a fim de que ele viva contigo. Não receberás dele juros nem lucro; mas temerás o teu Deus, para que o teu irmão viva contigo. Não lhe emprestarás com juros o teu dinheiro, e não lhe darás os teus víveres por amor ao lucro” (Lv 25, 35-37). Este ensinamento é sempre válido. Quantas famílias vivem na rua, vítimas da usura! Por favor, oremos a fim de que neste jubileu o Senhor tire do coração de todos nós essa ganância de ter mais, a usura. Voltemos a ser generosos, magnânimos. Quantas situações de usura somos obrigados a ver e quanto sofrimento e angústia existem nas famílias! E muitas vezes, no desespero, quantos homens acabam no suicídio porque não aguentam, não têm esperança, não têm uma mão estendida que os ajude, mas só uma mão que os obriga a pagar os juros. A usura é um pecado grave, um pecado que clama diante de Deus.
Caros irmãos e irmãs, a mensagem bíblica é muito clara: abrir-se com coragem à partilha. Isso é misericórdia! E se nós quisermos a misericórdia de Deus, comecemos nós mesmos a concedê-la. É isto: comecemos a concedê-la entre concidadãos, entre famílias, entre povos, entre continentes. Contribuir para edificar uma terra sem pobres quer dizer construir sociedades sem discriminações, baseadas na solidariedade que leva a compartilhar quanto se possui, numa divisão de recursos assente na fraternidade e na justiça. Obrigado!
Audiência Geral do papa Francisco. Praça São Pedro, 10 de fevereiro de 2016
Em sua 12ª Viagem Apostólica Internacional, o papa Francisco voltou a visitar o novo continente. Desta vez, o México, nos dias 13 a 17 de fevereiro, após uma rápida passagem por Havana, capital de Cuba, onde esteve com o Patriarca de Moscou e de todas a Rússia, Kirill. O encontro histórico, após 962 anos de separação entre as Igrejas Católica Romana e Ortodoxa Russa, resultou na troca de presentes e assinatura, entre os seus líderes, de uma declaração comum, cujo foco foi a perseguição que sofrem os cristãos no Oriente Médio e outros aspectos em que podem testemunhar juntos os valores cristãos.
Acolhida: música e alegria
Francisco foi acolhido na Cidade do México com uma grande recepção à moda mexicana, com música e alegria, no início da noite de sexta-feira (12). Milhares de fiéis aguardavam o papa na pista do aeroporto. Acolhido pelo presidente Peña Nieto e pela primeira-dama, mesmo sem discursos, o pontífice pôde deixar seu carinho a todos os mexicanos no abraço das crianças. Ele saiu do tapete vermelho, vestiu o chapéu mexicano e se aproximou do público. Foi uma pequena mostra do que seria a 12ª Viagem Apostólica.
Jovens: principal riqueza
No sábado (13), Francisco falou de sua alegria por estar em terras mexicanas, país que ocupa “um lugar especial no coração das Américas”. Declarou que estava ali “como missionário de misericórdia e de paz, mas também como um filho que quer prestar homenagem à sua mãe, a Virgem de Guadalupe, e deixar-se olhar por Ela”. O pontífice não se esqueceu de mencionar as riquezas naturais do México e sua importante localização geográfica, mas, sobretudo, destacou que a principal riqueza do país são os jovens. “Isto permite pensar e projetar um futuro, um amanhã. Isto dá esperança e abertura ao futuro. Um povo rico de juventude é um povo capaz de se renovar, de se transformar.” Ainda aos jovens, no dia 16, o papa pediu que eles não largassem a mão de Jesus, jamais, que valorizassem suas vidas e nunca fossem mercadorias alheias, mercadorias do narcotráfico.
Corrupção: detrimento social
Cada um ali presente, conforme disse o papa, tem responsabilidades pela construção do México. E exortou para o mal que causa a corrupção na vida social. “A experiência demonstra-nos que quando se busca o caminho do privilégio ou do benefício para poucos em detrimento do bem de todos, mais cedo ou mais tarde, a vida em sociedade transforma-se num terreno fértil para a corrupção, o tráfico de drogas, a exclusão das culturas diferentes, a violência e até o tráfico humano, o sequestro e a morte, que causam sofrimento e travam o desenvolvimento.”
Combate ao narcotráfico: apoio da Igreja
Na Catedral da Cidade do México, um longo e intenso discurso marcou o encontro do papa com os bispos mexicanos, no fim da manhã de sábado (13). Dividiu sua reflexão em quatro pontos, sempre inspirados em Nossa Senhora de Guadalupe e pediu coragem para enfrentar a chaga do tráfico de drogas. “A amplitude e complexidade do fenômeno exigem uma coragem profética e um projeto pastoral sério e qualificado para contribuir, gradualmente, a tecer aquela delicada rede humana, sem a qual todos estaríamos, desde o início, derrotados por tal ameaça insidiosa”.
Episcopado: conservar a comunhão
Afirmando que “não há necessidade de ‘príncipes’, mas de uma comunidade de testemunhas do Senhor na qual Cristo é a sua única luz, o papa disse que o México e a sua vasta e multiforme Igreja têm necessidade de bispos servidores e guardiães da unidade construída sobre a Palavra do Senhor, alimentada com o seu Corpo e guiada pelo seu Espírito que é o alento vital da Igreja”.
Santuário de Deus: rosto dos que sofrem
No Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, o papa pôs-se a rezar e venerar o ícone da virgem em oração após a santa missa. Ali, ele recordou durante sua homilia que como mulher do sim, Maria dedicou sua vida totalmente a Deus e aos irmãos e que ela visitou o povo mexicano na pessoa do índio Juan Diego. Francisco acrescentou que também hoje Maria continua a fazer-se presente junto de todos nós, especialmente daqueles que sentem que “não valem nada”. Ele disse ainda que na construção do santuário da vida, das nossas comunidades, sociedades e culturas, ninguém pode ser deixado de fora.
Hospital do Câncer: mensagem de esperança
O papa visitou o Hospital Infantil Federico Gomez, na Cidade do México, no domingo (14). A estrutura, referência nacional no tratamento do câncer infantil, principalmente leucemia, atende mais de 255 mil crianças por ano e são registrados mais de 6 mil internações. A média de cura das crianças com a doença chega a 80%.
Quaresma: tempo de desmascarar tentações
Na segunda missa da Viagem Apostólica ao México, em Ecatepec, o papa afirmou que a Quaresma é tempo de desmascarar três tentações: a riqueza, a vaidade e a pior delas –advertiu – o orgulho. Recorrendo ao Evangelho, Francisco pediu que todos prestassem atenção para não “tentar dialogar com o demônio”, porque ele vence sempre. “Até que ponto nos acostumamos a um estilo de vida que considera a riqueza, a vaidade e o orgulho como a fonte e a força de vida?”
Esperança à região mais pobre: Chiapas
O estado de Chiapas, apesar de seus grandes recursos naturais, é um dos menos desenvolvidos do país, com grande pobreza e analfabetismo. Cerca de 36% de seus habitantes falam exclusivamente a sua própria língua indígena. Por isso, o papa entregou um documento que autoriza o uso das línguas locais nas celebrações eucarísticas, tseltal, ch’ol e tsotsil. Esta foi a principal mensagem do pontífice naquele estado: “o mundo de hoje precisa reaprender o valor da gratuidade”, disse, enaltecendo a riqueza e valores dos povos indígenas, que muito têm a nos ensinar diante da ganância do lucro e do domínio despótico do homem sobre os bens da criação.
Prisões: sintoma de como estamos na sociedade
No último dia de sua viagem (17), o papa Francisco visitou em Ciudad Juárez, o Centro de Readaptação Social nº 3 (CeReSo). Em seu discurso sublinhou que celebrar o Jubileu da Misericórdia com os detentos “é o caminho que devemos urgentemente empreender para romper o ciclo vicioso da violência e da delinquência”. Afirmou que “a misericórdia divina lembra-nos que as prisões são um sintoma de como estamos na sociedade; em muitos casos são um sintoma de silêncios e omissões provocados pela cultura do descarte. São sintomas duma cultura que deixou de apostar na vida, duma sociedade que foi abandonando os seus filhos”.
Despedida: justiça aos migrantes
Na Missa de encerramento da Viagem Apostólica ao México, ao abordar o fenômeno global das migrações forçadas, o papa Francisco condenou as graves injustiças perpetradas contra milhares de migrantes que fogem da pobreza e da violência e, com frequência, acabam nas mãos de traficantes de seres humanos. “Aqui em Ciudad Juárez concentram-se milhares de migrantes da América Central e de outros países, sem esquecer tantos mexicanos que procuram também passar para ‘o outro lado’. Uma passagem, um caminho carregado de injustiças terríveis: escravizados, sequestrados, objetos de extorsão, muitos irmãos nossos acabam vítimas do tráfico humano”, recordou Francisco. Mais de 200 mil pessoas acompanharam a homilia do Papa em Ciudad Juarez.
Queridos irmãos e irmãs,
O Jubileu da Misericórdia é uma verdadeira oportunidade para entrar em profundidade no âmbito do mistério da bondade e do amor de Deus. Neste tempo de Quaresma, a Igreja convida-nos a conhecer cada vez mais o Senhor Jesus, e a viver de modo coerente a fé com um estilo de vida que expresse a misericórdia do Pai. É um compromisso que somos chamados a assumir para oferecer a quantos encontramos o sinal concreto da proximidade de Deus. O meu dia a dia, as minhas atitudes, o modo de andar na vida deve ser precisamente um sinal concreto do fato que Deus está próximo de nós. Pequenos gestos de amor, de ternura, de cuidado, que fazem pensar que o Senhor está conosco, está próximo de nós. E assim abre-se a Porta da Misericórdia.
Hoje gostaria de refletir brevemente convosco sobre o tema desta palavra que disse: o tema do compromisso. O que é um compromisso? E que significa comprometer-se? Quando me comprometo, significa que assumo uma responsabilidade, uma tarefa em relação a alguém; e significa também o estilo, a atitude de fidelidade e dedicação, de atenção especial com a qual levo por diante essa tarefa. Todos os dias, nos é pedido para dedicar atenção ao que fazemos: na oração, no trabalho, no estudo, mas também no esporte, nas atividades livres... Em síntese, comprometer-se significa dedicar a nossa boa vontade e as nossas forças para melhorar a vida.
E também Deus se comprometeu conosco. O seu primeiro compromisso foi o de criar o mundo, e não obstante os nossos atentados para destruí-lo – e são tantos – Ele dedica-se a mantê-lo vivo. Mas o seu maior compromisso foi o de nos doar Jesus. Esse é um grande compromisso de Deus! Sim, Jesus é precisamente o compromisso extremo que Deus assumiu em relação a nós. Recorda isso também São Paulo quando escreve que Deus “não poupou o próprio Filho, mas o entregou por todos nós” (Rm 8,32). E, em virtude disso, juntamente com Jesus, o Pai nos proporcionará todas as coisas de que necessitamos.
Levar a misericórdia aos que sofrem
E como se manifestou esse compromisso de Deus por nós? É muito simples verificá-lo no Evangelho. Em Jesus, Deus comprometeu-se de maneira total para restituir esperança aos pobres, a quantos estavam privados de dignidade, aos estrangeiros, aos doentes, aos presos e aos pecadores que acolhia com bondade. Em tudo isso, Jesus era expressão viva da misericórdia do Pai. E gostaria de mencionar um aspecto: Jesus acolhia com bondade os pecadores. Se pensássemos de modo humano, o pecador seria um inimigo de Jesus, um inimigo de Deus, mas Ele aproximava-se deles com bondade, amava-os e mudava o seu coração. Todos nós somos pecadores: todos! Diante de Deus todos temos alguma culpa. Mas não devemos desanimar: Ele aproxima-se precisamente para nos dar o conforto, a misericórdia, o perdão. É este o compromisso de Deus e por isso enviou Jesus: para se aproximar de nós, de todos nós e abrir a porta do seu amor, do seu coração, da sua misericórdia. E isso é muito bom. Muito bom!
A partir do amor misericordioso com o qual Jesus expressou o compromisso de Deus, também nós podemos e devemos corresponder ao seu amor com o nosso compromisso. E isso, sobretudo nas situações de maior necessidade, onde há mais sede de esperança. Penso, por exemplo, no nosso compromisso com as pessoas abandonadas, com quantos são portadores de deficiência muito graves, com os doentes nas piores condições, com os moribundos, com quantos não são capazes de expressar reconhecimento... A todas essas realidades nós levamos a misericórdia de Deus através de um compromisso de vida, que é testemunho da nossa fé em Cristo. Devemos levar sempre aquela carícia de Deus – porque Deus nos acariciou com a sua misericórdia – levá-la aos demais, aos que têm necessidade, a quantos têm um sofrimento no coração e estão tristes: aproximar-se com aquela carícia de Deus, a mesma que Ele nos deu a nós.
Que este Jubileu possa ajudar a nossa mente e o nosso coração a ver concretamente o compromisso de Deus por cada um de nós e, graças a isso, transformar a nossa vida num compromisso de misericórdia por todos.
Audiência Geral do papa Francisco. Praça São Pedro, 20 de fevereiro de 2016
Bispo referencial
Dom Marcony Vinícius Ferreira
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