Sexta, 11 Setembro 2015 00:00

Breves reflexões acerca da santidade canonizável

“O apelo à plenitude da vida cristã e a perfeição da caridade se dirige a todos os fiéis cristãos. A perfeição cristã só tem um limite, é ser ilimitada” (Catecismo da Igreja Católica, 2028)


Desde os seus primórdios a Igreja reconheceu dentre o número dos seus filhos alguns que, tendo abraçado a fé cristã e recebido o batismo, viveram e morreram na graça de Deus e, portanto, podem ser propostos como modelos de vida evangélica para toda a comunidade.

Numa consideração de caráter geral, chamar alguém de santo significa constatar, na vida deste indivíduo, a ausência de pecados mortais, ainda que, não de pecados veniais e imperfeições múltiplas. Além do mais, nele observar a prática das virtudes, ao menos no grau elementar. Contudo, no contexto eclesial, a santidade canonizável implica constatar a prática destas virtudes em grau heroico. Por tal heroicidade entendemos não só o cumprimento dos mandamentos e a vida na graça de Deus de forma permanente, mas também um plus, um certo quê de superabundância da graça, manifestado nas circunstâncias as mais diversas e inclusive adversas ou difíceis. Numa só expressão, a santidade canonizável é aquela na qual podemos, com segurança, constatar ter o candidato alcançado a perfeição da caridade, que é simultaneamente amor a Deus e ao próximo numa oblatividade sem outra vontade que aquela do próprio amor-entrega.

A história da Igreja conhece santos que, depois de uma vida incorreta, se convertendo, vivem a última etapa do caminho terreno na fidelidade a Deus e, coroam a existência humana com uma morte cristã exemplar, de absoluta entrega a Deus e da mais plena união com Cristo. Não é o caso, aqui, de citar nomes, mas, basta um Agostinho ou um Francisco de Assis para servir de marco referencial.

Na Igreja, o modelo primordial de santidade é o martírio pois o mártir se configura com o Cristo mártir. Formalmente, o martírio, ato máximo de fortaleza sobrenatural, se realiza por impulso da mais perfeita caridade e tem por fim a proclamação da fé com o pagamento do mais alto preço, o da própria vida. Neste ato de entrega da vida, todas as virtudes se cumprem de modo exemplar e se percebe claramente aquilo que o apóstolo Paulo afirmava, “para mim o viver é Cristo”, face ao qual, tudo é considerado como secundário. No martírio há uma completa assimilação a Cristo crucificado, participação no mistério da sua morte redentora e um testemunho clarividente da mais viva esperança no Reino e a bem-aventurança eterna. Desde essa perspectiva, o mártir, o santo, é um homem de Deus que, como sinal e instrumento de Jesus Cristo, reflete sobre o mundo a luz de Deus e a força de Deus; é um homem mediante o qual Deus conduz a história ou nela realiza os seus desígnios (ainda que, não sejam os únicos instrumentos, pois Deus é absolutamente livre para suscitar meios ali onde nossa mente sequer pode supor sejam possíveis).

Finalizado o período dos martírios, com a implantação do regime que posteriormente se designou de “cristandade”, por assim dizer, buscou-se na Igreja imitar o modelo martirial mediante uma vida de penitência (martírio incruento) e de pregação (fundadores de igrejas e de comunidades religiosas). Contudo, esses não foram os únicos modelos históricos, e a evolução não significa a superação de um pelos outros, senão a preponderância numa determinada época. Quer dizer, no seguimento de Cristo os diversos modelos de santidade surgem e convivem, expressando o inesgotável tesouro da graça.

Quanto ao modo de se propor e reconhecer a santidade, igualmente, ocorreu uma evolução. Num primeiro momento, que perdurou até por volta do século XII, correspondia à comunidade local presidida por seu Bispo, o reconhecimento da santidade de seus membros (são as chamadas “canonizações episcopais”). Assim, o nome dos santos era inscrito nos “dípticos” da Igreja e incorporados no “cânon” da Missa, donde a denominação “canonização”, em uso até nossos dias. Com o passar do tempo, de forma quase que imperceptível em seus inícios, houve a passagem da canonização episcopal para uma “reserva papal”. Num primeiro momento, o Papa procedeu a canonizações na sua diocese como quaisquer Bispos nas suas respectivas; depois, por volta do século IV, o Papa começou a presidir canonizações para outras dioceses; entre os anos 993 a 1234 procedia a canonizações conjuntamente com outros Bispos e, a partir de 1234 ocorreu a reserva pontifícia que, depois de 1634 ganhou os contornos como os conhecemos em nossos dias.

Com a passagem do culto local ao culto universal, ocorreu também uma evolução no modo de se propor e de se reconhecer a santidade. Assim, no decorrer dos séculos assistimos a uma maior determinação quanto aos aspectos processuais e jurídicos do reconhecimento para garantir a autenticidade do culto àqueles que não foram testemunhas presenciais da santidade deste homem ou desta mulher ao qual se atribuía a fama de santidade.

Um elemento importante a ser considerado é que a santidade dos ‘canonizáveis’ se manifesta mediante os efeitos dela mesma noutros homens. Esses citados efeitos supõem normalmente uma virtude abundante, heroica, naqueles que os produzem. Quer dizer, no céu os santos são os intercessores que obtêm para os fiéis em Cristo os favores, aquelas virtudes, das quais foram na terra modelos e, com frequência, eficazes propulsores.

A Igreja, ao propor candidatos à beatificação e canonização, em concordância com o seu mesmo fim, tem ante os olhos uma dupla dimensão: homenagem reverencial aos heróis do evangelho, o que imediatamente comporta a glorificação de Deus; e o bem sobrenatural dos homens, mediante o exemplo e a intercessão de seus irmãos mais preclaros.

Contudo, a canonização não é um prêmio a um cristão que viveu heroicamente suas virtudes. Canonizar ou beatificar é um ato social eclesial, cujo objetivo final não são os santos mas os fiéis, beneficiários e destinatários da mesma e, se em nossos dias a Igreja beatifica e canoniza os Servos de Deus, isto mostra a sua vitalidade. Assim, não se trata apenas de recordações históricas mas da proposição, sempre renovada, do ideal da santidade, mesmo em meio às dificuldades do nosso tempo presente.

Quando a Igreja se dispõe a, oficialmente, declarar algum dos seus filhos como digno servidor do evangelho e, portanto, passível de ser imitado, seu objetivo é instruir os fiéis sobre as formas práticas de viver a vida cristã, com toda a sua intensidade e em suas mais elevadas manifestações. Assim, sem dúvida alguma, existe, uma função muito importante de tipo doutrinal e de utilidade prática em ordem à salvação e à perfeição espiritual dos homens.

Dom Valdir Mamede
Bispo Auxiliar de Brasília 

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