No dia 2 de novembro nossa liturgia traz o título de “comemoração de todos os fiéis defuntos”, diferente de solenidade, festa, memória facultativa ou obrigatória, embora ocupe na tabela de precedência do missal o nível de Solenidades (Cf. Adam, Adolf, O ano litúrgico, p. 232). O costume de recordar os mortos em certos dias já estava presente na cultura antiga dos pagãos. Também os cristãos rezavam pelos seus mortos desde o século segundo, conforme Adolf Adam (Ibidem, p. 232), mas a partir do século VII, com o bispo Isidoro de Sevilha, houve a orientação para dedicar um dia do ano para tal intenção: orar pelos falecidos.
É um dia para recordar, isto é, trazer de volta ao coração as pessoas queridas que já fizeram sua páscoa. Claro que o verdadeiro sentimento de amor nunca foge do nosso coração; as pessoas que amamos nunca morrem na nossa memória. Nós as recordamos com saudade. Para Rubem Alves, “a morte é onde mora a saudade” (Cf. sete vezes Rubem, p. 326). Hoje é um dia de saudade, de manifestar o nosso amor por essas pessoas que ficaram na nossa vida para sempre. A forma que temos para expressar o amor por elas é a nossa oração. Este é um dia de oração pelos falecidos.
Há muitas propostas de textos para as celebrações deste dia: orações, prefácios, leituras bíblicas... O missal traz três propostas de missas e muitas outras de leituras bíblicas. Além dos Evangelhos dessas três, acrescenta dezesseis textos dos quatro evangelistas. Vamos refletir um pouco sobre Jo 14,1-6: “Na casa de meu Pai há muitas moradas”.
João insere o discurso de Jesus na última ceia. Ele consola seus discípulos numa conversa de despedida: “não se perturbe o coração de vocês”! E promete preparar um lugar para nós. Há muitas moradas na casa do nosso Pai. A casa do Filho Jesus é feita por Ele também nossa. Sua casa é imensurável! Não contém só um cômodo confortável para os heróis e vencedores. É casa acolhedora e hospitaleira. Não é um hotel luxuoso para os privilegiados que pagam um preço caro para ingressar. É gratuita, como profetizara Isaías: Venham! Vocês que têm fome e sede, comam e bebam sem dinheiro e sem pagar. Venham para o banquete (cf. Is 55,1-2). Alguns querem exclusivismo, a propriedade daquilo que é feito dom para todos. Há quem queira transpor para a eternidade os privilégios injustos do nosso sistema econômico, que se julgam donos exclusivos da morada eterna. Creio que a casa do Pai, feita também nossa, é eterna e infinita, é universal, é de todas as criaturas. Já é o nosso planeta, onde Jesus se encarna, arma sua tenda e permanece entre nós. Sua despedida é um até logo, no nosso conceito de difícil compreensão cronológica, pois não há tempo assim para Deus. Ele vai, mas logo volta.
No Evangelho mais longo que reflito (Jo 14,1-12), há uma incerteza em Tomé, que representa o grupo, e uma dúvida: não sabem para onde Jesus vai e como poderão conhecer o caminho. Tomé simboliza a comunidade inquieta com a despedida de Jesus. Outro discípulo, Felipe, também participa da cena. Pede a Jesus: “mostra-nos o Pai, isto nos basta!” (v. 8). Para onde vamos, qual o caminho, como ver o rosto do Pai? Em Jesus está a resposta: Ele é o caminho, a verdade e a vida. Nele contemplamos o rosto amoroso do Pai, que é ternura maternal. No primeiro Testamento, Deus era intocável, invisível e irrepresentável. Quem o visse morreria. Quanto desejo de vê-lo, tocá-lo, senti-lo e abraçá-lo. Felipe representa o desejo da comunidade, o nosso desejo. Em Jesus realizamos este desejo. Ele não tem nojo de nós, nos toca, nos abraça nas crianças, se compadece dos que sofrem. Ele se faz caminho e caminhante. Ele clareia nossas dúvidas. Ele traz a vida, quer a sua preservação e que seja vivida em plenitude (Cf. Jo 10,10).
O querido papa Francisco nos convida a ser uma Igreja em saída, a ir às periferias para contemplar e tocar o rosto de Jesus em cada pessoa, sobretudo nas que sofrem. Mesmo que haja o risco de cair na caminhada, se enlamear e se ferir. Sair, caminhar, não ficar estáticos! Igreja missionária, Igreja samaritana, Igreja servidora. O rosto do Pai é vislumbrado no rosto do Filho; e o rosto do Filho se manifesta, além dos mistérios que celebramos, no rosto de quem sofre. A comunidade missionária não deve ter medo de ir ao encontro das pessoas excluídas nas encruzilhadas do caminho e tocar a carne sofredora de Cristo no povo (Cf. Evangelii Gaudium n. 21). Ainda, conforme Francisco, devemos descobrir Jesus no rosto dos outros, na sua voz, nas suas reivindicações; também aprender a sofrer, num abraço com Jesus crucificado, ao enfrentarmos agressões injustas e ingratidões, sem nos cansarmos jamais da fraternidade (Ibidem n. 91). Quem não ama o seu irmão permanece na morte e não chegou a conhecer a Deus, porque “Deus é amor” (Cf. 1Jo 4,8). Citando Bento XVI, Francisco destaca que “fechar os olhos diante do próximo nos torna cegos diante de Deus” (Evangelii Gaudium n. 272).
A vida é dom irrevogável de Deus. Temos sede insaciável de vida, temos sede de Deus. Mas essa vida plena é ferida na nossa caminhada pelas muitas injustiças sociais, e a Igreja não pode ficar indiferente. Conforme Brighenti, “uma religião que não plenifica a vida das pessoas ou que não as faz mais felizes, não é digna do ser humano” (A Igreja do futuro, p. 38).
Hoje é dia de saudade, mas também de esperança: de vida digna nesse nosso peregrinar e de vida plena na eternidade. Como diz o Prefácio dos fiéis defuntos n. I, “aos que a certeza da morte entristece, a promessa da imortalidade consola”; para quem crê, a vida não é tirada, mas transformada.
Dom Jeová Elias
Bispo da diocese de Goiás