Em um primeiro momento pode-se pensar que estes dois conceitos justiça e misericórdia são contrários e incompatíveis. Mas não é assim, se os consideramos e os valorizamos desde a revelação bíblica e dentro do marco da fé cristã. Certamente a justiça é entendida também em muitos textos bíblicos como o fiel cumprimento da lei e como exigência de um comportamento humano em conformidade com os mandamentos dados por Deus (Sl 119,1-8). Porém diz o Papa que essa perspectiva, unilateralmente contemplada, teve e tem em todas as culturas o perigo de cair em um legalismo superficial, esquecendo ou relegando o sentido mais valioso e positivo da verdadeira justiça.
Com o fim de superar esse perigo legalista é preciso recordar que a aceitação primordial e mais original da justiça na Sagrada Escritura é a de ser um dom gratuito e um projeto salvífico de Deus em favor do homem. A justiça, com efeito, tem como objetivo principal a salvação e a felicidade humana, já que sua base e suporte fundamental é a aliança bíblica, através da qual se estabelece e sela uma relação e comunhão de misericórdia e de amor e o ser humano.
Neste contexto temos de situar aquela severa crítica de Jesus aos fariseus e mestres da lei: “Ai de vós que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Importava praticar essas coisas, mas sem omitir aquelas. Condutores cegos, que coais o mosquito e tragais o camelo!” (Mt 23, 23-24). “Não é estranho, diz o Papa Francisco, que Jesus tivesse sido rejeitado pelos fariseus e doutores defensores da lei pela lei já que eles punham só cargas sobre os ombros das pessoas, frustrando assim a misericórdia de Deus Pai”.
Diante de qualquer forma de legalismo, Jesus fez suas aquela palavras do profeta Oséias: “Eu quero misericórdia, não sacrifícios, conhecimento de Deus, mais do que holocaustos (Mt 9,13). A misericórdia foi, sem dúvida, a dimensão básica da atitude pessoal de Jesus e o princípio fundamental de sua missão. Desde uma visão autenticamente cristã a justiça e a misericórdia não são incompatíveis, mas se exigem e complementam mutuamente. Mostrar misericórdia não significa menosprezar a justiça, “Mas englobá-la e superá-la num evento superior”. A misericórdia e a justiça, estreitamente relacionadas e implicada entre si, tiveram sua plena e definitiva expressão e cumprimento na vida, morte e ressurreição de Jesus.
Insistindo na relação entre a misericórdia, a justiça e o perdão, quero concentrar-me nos números 20 e 21 da Bula “Misericordiae vultus”, apresentando algumas das reflexões contidas nelas. “A justiça é um conceito fundamental na sociedade civil quando, normalmente, se faz referência a uma ordem jurídica através da qual se aplica a lei”.
A lei e sua aplicação em justiça são fundamentais para o reto funcionamento da vida social, sempre que se trate de uma lei “justa”, de acordo com a dignidade das pessoas e seus direitos fundamentais. Neste sentido, administrar a justiça é aplicar corretamente a lei. A justiça humana se atém à lei. Mas as relações humanas são mais do que a lei, e o amor e a misericórdia a superam, não a anulando, mas indo “mais além”, o que o Papa Chama “ a superação da justiça em direção à misericórdia.
Nesse sentido, o Papa se fixa na reflexão que faz o livro do profeta Oseias: mesmo sendo “justo” que Deus castigue seu povo infiel, que lhe voltou as costas uma e outra vez, o mesmo Deus apela à sua misericórdia. Porque, afirma o Papa: “Se Deus Se detivesse na justiça, deixaria de ser Deus; seria como todos os homens que clamam pelo respeito da lei. A justiça por si só não é suficiente, e a experiência mostra que, limitando-se a apelar para ela, corre-se o risco de destruí-la. Por isso, Deus, com a misericórdia e o perdão, passa além da justiça. Isto não significa desvalorizar a justiça ou torná-la supérflua. Antes pelo contrário! Quem erra, deve descontar a pena; só que isto não é o fim, mas o início da conversão, porque se experimenta a ternura do perdão. Deus não rejeita a justiça. Ele a engloba e a supera num evento superior onde se experimenta o amor, que está na base de uma verdadeira justiça”.
É verdade que na Bíblia se fala, também, de “castigo” de Deus, porém se trata de um castigo sempre medicinal. O castigo não é a última palavra em Deus. Se nos afastarmos dele será por nossa obstinação, porque nos obstinamos em permanecer no mal. Porque o mal é real e é possível obstinar-se nele. De qualquer maneira, estamos aqui diante do mistério de Deus, que nunca podemos decifrar completamente com nossos esquemas humanos. Permanece a grande afirmação da carta de São João: “Deus é amor” (1Jo 4,8), e o convite de Jesus: “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso (Lc 6,36), que, se colocamos junto ao que encontramos em Mateus, “Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito” (Mt 5,48) nos sugerem que a perfeição de Deus é sua misericórdia e a ela Ele nos convida imitar. Essa mensagem do amor misericordioso de Deus não nos deve levar a tomar nossa relação com Ele de forma leviana (se é bom e perdoa, para que esforçar-se tanto?), mas, ao contrário, a responder com uma vida de amor ao amor de Deus, ao Amor que é Deus. O temor pelo castigo é um estádio imperfeito (às vezes, quiçá, pedagogicamente necessário, porque os humanos somos assim). Entretanto a perfeição está no amor. “No amor não há temor; antes, o perfeito amor lança fora o temor, porque o temor tem consigo a pena, e o que teme não é perfeito em amor” (1Jo 4,18).
Dom Washington Cruz, CP
Arcebispo de Goiânia