Nossa Senhora Aparecida

Nossa Senhora Aparecida está enraizada na alma do povo brasileiro porque ela se identificou com este povo de maneira simples e concreta: foi encontrada por pescadores pobres; é negra; a imagem estava em pedaços que precisaram ser recompostos. A Padroeira de uma nação é um ponto de referência e um estímulo para o caminho de um povo.

A festa deste ano se dá num contexto especial de pandemia ainda não superada; de restrições sanitárias que limitam as celebrações, mas nem por isso perde seu sentido profundo.

1. A Mãe Aparecida está do lado dos fracos e descartados, como seu Filho Jesus. É uma praxe constante dela aparecer ou se deixar encontrar por pessoas humildes: foi assim em Guadalupe, foi assim com os pastorzinhos de Fátima, foi assim também nas aparições de Lourdes. O Céu, por nós sinal de grandeza, de infinito, de plenitude gosta do que é simples, humilde, pobre e Maria não se afasta desse comportamento divino. A celebração da Padroeira do Brasil deveria estimular toda a Igreja a repensar nos rumos assumidos em Medellín, Puebla, Santo Domingo, Aparecida para que a “escolha preferencial pelos pobres” não seja simplesmente um bom propósito, mas a postura normal de uma Igreja normal. A pandemia evidenciou a desigualdade social; o aumento dos pobres; entre eles os miseráveis; os desempregados; os sem rumo e direção porque desnorteados; do medo e do pavor do futuro etc. Ao rendermos culto à Bem-aventurada Virgem Maria não podemos esquecer suas preferências e atitudes de solidariedade como em Canaã da Galileia. Os pobres existem, são nossos vizinhos de casa, são vítimas de mecanismos iníquos e a Igreja no Brasil não pode esquecer sua longa história de compromisso profético que a fez conhecer como Igreja corajosa e solidária no mundo inteiro.

2. A Senhora Aparecida é morena, se identifica com um povo numeroso e humilde que ajudou a construir o Brasil. Será fora de lugar diante de tantos atos de racismo, de discriminações não só dos negros, mas também de tantas outras categorias sociais, realçar esse aspecto de Nossa Senhora Aparecida? Ela reconhece nos mais humildes a dignidade que eles têm, o valor inestimável de ser pessoa, apesar de todas as diferenças raciais, de sexo, de condição social. Me parece urgente não subestimar o problema que exige grandes mudanças em nossos comportamentos, também eclesiais.

Muitos anos atrás me chamou a atenção a reação do então bispo de , Dom Aloisio Hilário de Pinho, bispo emérito de Jataí, recentemente falecido. Ele, bispo negro, sempre manso e paciente, teve uma reação inesperada diante de um padre que afirmava que no Brasil não existe racismo. Deveríamos escutar com mais atenção e cuidado quem vive na sua pele o problema e às vezes não se vê suficientemente integrado, também na Igreja.

3. A imagem de Nossa Senhora Aparecida é encontrada no Rio Parnaíba em pedaços, um conjunto de cacos que precisaram ser pacientemente recompostos. Vejo nisso um recado muito forte e de atualidade. A realidade social e eclesial de hoje com todas as polarizações que conhecemos requer um trabalho paciente de busca da unidade e harmonia entre classes, partidos, pastorais, movimentos. O desafio é muito grande e urgente, sobretudo para quem normalmente levanta muros e não sabe construir pontes que aproximem as pessoas. Os radicalismos, de qualquer parte venham, não podem ser confundidos com a radicalidade evangélica que aos poucos leva para a unidade no respeito mais profundo da diversidade. Também em nossa Igreja, não somente nos partidos, há defeitos graves que ferem a unidade e toda aquela lógica do “sentir em comum” tão prezada pelo Novo Testamento.

Maria é um estímulo permanente para que se concretize o que Santo Agostinho dizia: “No que é necessário a unidade; no que é opinável a liberdade; em tudo a caridade”. Nossas divisões, não poucas vezes, evidenciam a incapacidade de se escutar e entender; a incrível tendência a sermos popstar sempre e a qualquer custo. O outro também é gente, tem visão de mundo e de Igreja e colabora para o bem comum.

A festa da Padroeira, portanto, possa despertar o amor e a inclusão dos pobres na realidade nacional; o respeito para todas as pessoas, sem marginalizar ninguém; o trabalho lúcido na construção da unidade do país.

Maria está no coração do povo. Percebi isso de forma claríssima quando nos foi doada pelo Santuário Nacional a imagem da Padroeira na comemoração dos 300 anos do Santuário. A imagem peregrinou por quase três anos em todas as paróquias, capelas e comunidades de diocese encontrando acolhida calorosa em todos os lugares. Peregrinou também neste ano em todas as paróquias para comemorar os 60 anos de existência da Igreja de São Luís de Montes Belos. O povo não cansa de se encontrar com a “Mãe de Deus e nossa”.

Dom Carmelo Scampa
Bispo emérito de São Luís de Montes Belos