No início da travessia quaresmal os fiéis da Igreja recebem o convite para rasgarem os corações e se aproximarem de Deus. Numa tradição imemorial que repetimos todos os anos na Quarta-feira de cinzas, quando rememoramos a nossa condição de pó e poeira que só encontra recompensa na imensa misericórdia do amor de Deus.
A comunidade cristã preservou a forma original do antigo texto do profeta Joel: “rasgai o coração, e não as vestes”, como indicação para uma conversão duradoura.
Corações rasgados não são corações dilacerados. O rasgado ainda permanece unido. Ligado por inúmeros filamentos que se reconstituem com o passar do tempo ou com o acréscimo de coisas novas. Um tecido rasgado pode ser reconstruído. As vezes precisamos aumentar o rasgo para consertar e retocar.
Também o coração precisa ser rasgado! Aberto, para que saia de si tudo aquilo que não é bem. Todo tipo de mal, de maledicência e de inconsequências. Ao mesmo tempo que precisa ser retocado com coisas boas, esperança, fé nos semelhantes e amizade fraterna.
Rasgar os corações é uma determinação que ecoa constantemente nos ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Um ensinamento que ele dirige a todos os discípulos, os de perto e os de longe.
É no coração que se estoca tudo, coisas boas e más. A justiça que se aprende desde pequeno, por vias tortas, deve ceder lugar a uma justiça nova. Uma justiça que não se vangloria de sua força, mas que é invencível no amor e no perdão! Por isso, disse o nosso divino Mestre: se a sua justiça não superar a dos fariseus não entrareis no Reino do Céu!
Uma ruptura com o coração velho urge para que o Reino cresça. Não sem dores ou barulho, pois nem o mais delicado tecido deixa de fazer barulho ao se rasgar.
Da Quarta-feira de Cinzas até o primeiro Domingo da Quaresma Jesus propõe um empenhativo caminho entre o rasgar e o curar o coração através de três situações particularmente desafiadoras.
Antes de tudo, o Coração rasgado deve ser preenchido com aquilo que mais importa, pois tem pouco valor “ganhar o mundo inteiro, se se perde e se destrói a si mesmo (Lc 9,25). Achar o caminho nestes quarenta dias exige atenção e meditação constantes para as escolhas. Encontrar o sentido do que fazemos e para que fazemos.
Não faz sentindo, portanto, a pergunta dos fariseus sobre o jejum dos discípulos de Jesus, como já expresso na própria liturgia das cinzas. O jejum não é uma prestação de contas a quem quer que seja, mas uma penitência diante de Deus que implora pela graça de ter um coração melhor.
O propósito é rasgar este coração até que seja capaz de suportar em si, ao menos, parte da imensa misericórdia do Coração de Deus, de modo que nem os pecadores fiquem de fora de seu interesse, pois os “sadios não precisam de médico, mas sim os que estão doentes” (Mt. 5,31).
O nosso pecado quotidiano encontra esperança no enorme Coração de Deus, que nos acolhe a todos e nos ensina a fazer o mesmo.
Deus também sabe que forças abomináveis agem para fechar e endurecer os nossos corações. Ele mesmo experimentou este horror no deserto. Atingido pelas precariedades da vida, a começar pela fome, Nosso Senhor foi tentado a enrijecer-se na busca desenfreada para suprir a sua necessidade. Mas seu coração é extravasado de amor por tudo de bom e de belo que existe no Pai, por isso é capaz de dizer: “não só de pão vive o homem” (Mt. 4,4).
Ao superar a mais básica das necessidades, Jesus nos põe no caminho da conversão. Uma fé operosa que luta quotidianamente para que outros irmão não sejam tentados acima de suas forças, e não sucumbam a tentação do mal. Uma luta que combatemos em nossos próprios corações e no coração dos outros.
O primeiro enfrentamento nessa travessia é para prover o mínimo a cada irmão, para que ninguém se sinta abandonado por Deus.
O segundo é superar as tentações de autossuficiência como trapaça que o demônio queria colocar como opção diante de Jesus: ser como Deus. Essa alternativa não atrapalha a decisão de Jesus, que é Deus, mas pode nos iludir. Ao pensar que a nossa própria força, ou mesmo a nossa santidade, são suficientes para abrir caminhos neste mundo, entramos numa estratégia sem saída, incapaz de arrebentar as fronteiras da morte e da desilusão. Jesus é o caminho! Nós abrimos veredas no arado do Reino, com a certeza de que iremos sair numa estrada mais larga, já preparada por Aquele que é muito maior que nós.
Por fim, todos os anos repetimos o mesmo caminho e exercícios espirituais, pois o que endurece o coração não desaparece nem se destrói. Nos ronda como um leão silencioso pronto para atacar, como aprendemos das tentações descritas em Mt 4,1-13, “o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno”.
Dom Lindomar Rocha Mota
Bispo de São Luís de Montes Belos (GO)