Amar para reunir e existir

Iniciamos o ano sob os impactos de algumas situações cujas pessoas envolvidas são destinos da caridade cristã. Uma delas é as chuvas torrenciais causadoras de milhares de famílias desabrigadas e desalojadas de suas casas. No dia 12 de janeiro, a CNN Brasil informou que mais de 113 mil pessoas, entre desalojados e desabrigados, em oito estados brasileiros, tiveram que deixar suas casas (cf. https://tinyurl.com/2p8muv4b). Em Goiás, na região de Cavalcante, três mil pessoas foram afetadas pelas chuvas e 198 casas correm o risco de cair (cf. https://tinyurl.com/2p95p3k2). Outro ponto é a quantidade de pessoas em situação de rua em São Paulo; já são 31.884 pessoas. Nos últimos dois anos o aumento foi de 31%, segundo o relatório da Prefeitura local (https://tinyurl.com/2exmm67b). Juntamente a estas situações, prossegue a pandemia da covid-19 com as suas consequências existenciais, sanitárias, econômicas e políticas.

Estes acontecimentos integram um quadro maior de sofrimento e miséria presentes na vida de milhões de pessoas em todo o mundo. Estas situações tendem a se tornarem normais para diferentes pessoas, não facilmente para quem as vive. Diante das dores sociais e existenciais do outro nota-se o evoluir da indiferença, exclusão, apatia e desconexão por parte de alguns dos seus semelhantes. Estas atitudes separam de tal maneira as pessoas ao ponto daquelas mais carentes serem “des-existencializadas”, isto é, deixam de existir na consciência das pessoas, pois para elas a vida segue com as suas preocupações pessoais cotidianas. Este processo é acelerado sobretudo quando o fato não é mais noticiado.

O que seria capaz de unir as pessoas umas as outras, sobretudo, àquelas mais desprovidas dos bens correspondentes à sua dignidade humana? Haveria um elemento capaz não somente de ligar, mas também de gerar processos promotores de vida plena face aos sofrimentos e chagas sociais? Existe uma ação tipicamente humana capaz de responder a este problema. É o amar, o praticar a caridade, ser caridoso.

A caridade é o dom sincero de si ao outro. É um movimento específico do ser pessoa. Os animais podem ser afetuosos, todavia eles não amam. A pessoa humana, porque é espiritual, é autopossessão e autodomínio. Por isso, ela pode decidir direcionar o seu ser a outra pessoa. Neste movimento de liberdade e transcendências as pessoas se unem não como se agrupa várias coisas em uma cesta. A caridade vincula, une, reúne as pessoas por dentro, cria comunhão. É algo espiritual, toca o núcleo do núcleo humano. Nesta união a vida se plenifica porque cada alguém é uma riqueza para quem a recebe.

A caridade se mostrou de modo excelente em Jesus Cristo porque Ele é amor, “Deus é amor” (1Jo 4,8). Pela entrega de si mesmo, Ele uniu o que era dividido (cf. Ef 2,14). Devolveu os leprosos ao convívio social ao curá-los movido por amor (cf. Lc 5,12-16). Jesus Cristo uniu-nos ao Pai ao realizar o maior gesto de amor: dar a própria vida por seus amigos (cf. Jo 15,13). Nos últimos dias de sua vida, Ele ordenou aos seus discípulos fazerem o mesmo: “como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13,34).

Há muitos “inexistentes” existentes para Deus-amor. Há tantos desconectados, invisibilizados ao longo do tempo, postos à margem ou descartados da vida, esperando um coração cristão para existir. A pessoa humana existe autenticamente quando ela vive para alguém e tem alguém que existe para ela. As pessoas em situação de miséria causada pelas próprias escolhas, ou resultado da economia mortífera ou ainda originadas pelas tragédias naturais estão “desaparecendo”. É preciso ligá-las ou religá-las à família a qual pertencem: a humanidade, pois “todos vós sois irmãos” (Mt 23, 8).

O caminho é a caridade, como bem nos apontou Jesus Cristo. Isto está ao alcance de cada pessoa, pois por natureza ela é imagem e semelhança de Deus. Isto implica uma capacidade inata de amar. Com maior razão, diga-se do batizado, sobre quem foi derramado o Espírito Santo, o amor em pessoa.

Neste sentido, a Igreja Católica no Brasil nos recorda que “na fé cristã, a espiritualidade está centrada na capacidade de amar a Deus e ao próximo. Rezar e servir, amar e contemplar, são realidades indispensáveis para o discípulo de Jesus Cristo” (CNBB, DGAE 2019-2023, n.102). Deste modo, uma comunidade católica se identifica pela caridade no serviço à vida plena, segundo o estilo de Jesus Cristo.
Os católicos devem se sentir tocados pelos apelos de milhares de brasileiros em estado de extrema necessidade e exercitar para com eles a caridade como dimensão fundamental da vida cristã. Atitudes de ternura, acolhida, solidariedade, partilha e apoio espiritual unirão as pessoas e evitarão que as sofridas caiam na inexistência. Feito isso, muitas dirão: “existo pelo amor”.

Dom Francisco Agamenilton
Bispo Diocesano de Rubiataba-Mozarlândia-GO