Vida litúrgica em tempo de pandemia

O arcebispo metropolitano de Goiânia, Dom Washington Cruz, escreve artigo com o tema “Vida litúrgica em tempo de pandemia”, no qual ele reflete sobre três dimensões para a celebração da Páscoa do Senhor de forma real, e não virtual. Essas três dimensões são: a comunidade, a corporeidade, a comensalidade, que nos possibilitam o encontro com o ressuscitado. Embora seja necessário cuidados com a pandemia neste difícil momento que estamos vivendo a pouco mais de um ano, Dom Washington exorta que não é possível existir cristianismo de forma virtual. A Eucaristia, conforme o arcebispo, requer-nos de corpo e alma. Leia na íntegra, abaixo.

 

Na medida que nos é possível, neste tempo de pandemia vamos à igreja para o encontro com Cristo, à volta da mesa da Palavra e da Eucaristia. Jesus coloca-se no nosso meio. “Ele está presente no meio de nós quando nos reunimos no seu amor e, como outrora aos discípulos de Emaús, ele nos explica o sentido da Escritura e nos reparte o pão da vida” (Oração Eucarística V). Nós abeiramo-nos do Senhor, “espantados e cheios de medo” (Lc 24,37), por causa dos nossos pecados. Mas estamos cheios de confiança, pois “se alguém pecar, nós temos Jesus Cristo, o Justo, como advogado junto do Pai” (1 Jo 2,1).

O evangelho de São Lucas (24, 35-48) evidencia três dimensões muito importantes para celebrarmos a Páscoa e tornarmos possível, real e não virtual, o nosso encontro com Cristo Ressuscitado: a comunidade, a corporeidade, a comensalidade.

1. A comunidade: Os discípulos de Emaús regressam à comunidade primeira, ao grupo dos onze Apóstolos, de onde tinham desertado. Ali dão testemunho do seu encontro com Cristo no caminho de Emaús e, em casa, ao partir do Pão. Ali recebem o testemunho dos outros Apóstolos, que viram o Senhor. Ali, juntos, em comunidade, fazem a experiência de Cristo, que está no meio deles, desse Cristo que os precede no caminho e os preside à mesa. Sozinhos, duvidam. Sozinhos, não sabem se estão sonhando, delirando ou vendo um fantasma. É no encontro e no confronto, no seio de uma comunidade viva, que podem realmente crescer na fé e no testemunho. Ninguém pode dispensar-se da comunidade. “Ninguém pode encontrar a vida isoladamente; precisamos de uma comunidade que nos apoie, que nos auxilie, e dentro da qual nos ajudemos mutuamente a olhar para frente. Sozinhos, corremos o risco de ter visões, enxergando aquilo que não existe; é juntos que se constroem os sonhos”, é juntos que se faz comunidade! Que este pensamento nos ajude a vencer a ilusão de que podemos confinar a fé no recanto da nossa casa, de que não precisamos de uma comunidade reunida, como grande família de irmãos.

2. A corporeidade: O relato da aparição do Ressuscitado (Lc 24, 36-46) insiste muito na importância do corpo, das mãos e dos pés, da carne e dos ossos de Jesus. O corpo não é um obstáculo, nem uma prisão da alma. Por isso, uma fé viral e virtual, imaginária, desencarnada, que dispense o corpo e os seus sentidos, é apenas um ilusório sentimento religioso. A vida cristã não se realiza fora desta esfera corpórea e material, porque em Jesus Cristo, o Verbo se fez Carne e a nossa carne tornou-se via de salvação. Por isso, rezamos e celebramos também com o corpo: o corpo entra na oração e participa da liturgia, porque esta é acontecimento, é presença real, é encontro pessoal com Cristo. Ora, Cristo torna-se presente, no Espírito Santo, através dos sinais sacramentais da água, do óleo, do pão e do vinho, que nos lavam, perfumam, alimentam, curam e fortalecem. Não podemos participar na liturgia a meio corpo, mas de corpo inteiro, através dos sentidos ampliados pela fé: o ouvido, a visão, o tato, o olfato, o paladar. A Eucaristia, por exemplo, não pode ser só ouvida, como se nós fôssemos meros espectadores. Ela requer os olhos e a visão da fé, ela dá-nos o pão a comer e a saborear. Ela requer-nos de corpo e alma.

3. Comunidade e corporeidade convergem na comensalidade. Precisamos nos encontrar junto à mesa da Eucaristia. Jesus disse-lhes: “Tendes aqui alguma coisa para comer?” É sempre na sala da Ceia, participando de uma refeição, que o Ressuscitado se manifesta. É ao partir do pão que os discípulos o reconhecem-no vivo e ressuscitado. Este alimento tomado à mesa não pode ser substituído por transmissões eletrônicas. Não podemos ficar satisfeitos com uma Missa pela televisão, pelo Facebook, como não podemos matar a fome a ver programas de arte culinária. Na verdade, um cristianismo sem liturgia, sem corpo e sem comunidade, é também um cristianismo sem Cristo, sem corpo e sem alma.

Fique então claro para todos, agora que começamos a sair do isolamento físico: “Uma familiaridade com Cristo sem comunidade e sem pão, sem povo e sem sacramentos, é perigosa. Pode tornar-se uma familiaridade agnóstica” (Papa Francisco, Homilia, 17.04.2020), isto é, aparente, sem consistência, sem vitalidade real. Tenhamos, por isso, cuidado em não nos acomodarmos ao sofá das transmissões das celebrações pela internet ou pela TV. “Cuidado para não viralizar a Igreja, os sacramentos, o povo de Deus. A Igreja, os sacramentos, o povo de Deus… são concretos”, são matéria, são para gente de carne e osso. Logo que for possível, voltemos a celebrar a Páscoa na igreja. Voltemos, com alegria, à comunidade, de corpo e alma, à mesa da Eucaristia.

Dom Washington Cruz, CP

Arcebispo Metropolitano de Goiânia