500 mil, uma estética do assombro

Com quinhentas mil vidas perdidas temos que comparar este número com a realidade e desconstruí-lo novamente.

Apesar de termos a enorme facilidade de nos acostumarmos com quase tudo é imperativo relançar o olhar sobre o desenvolvimento da pandemia para nos assombrarmos novamente.

Os múltiplos que vão acontecendo causam, cada vez menos, estupor e espanto. Cinco, cinquenta, e agora as centenas de milhares de mortos, tornam-se os pontos de referência para gerar algum constrangimento.

Esteticamente 500 mil é um número demasiadamente grande em relação a quase tudo que podemos pensar. 500 km, 500 mil dólares, 500 mil escolas, 500 mil lagos, 500 mil pássaros… 500 mil vidas…

500 mil é um número tão grande, que, a este ponto, é quase impossível que algum dos 214 milhões de brasileiros não conheça alguém que faleceu vítima desta pandemia. É um número que assombra os sentidos, mas que, infelizmente, se comparado com a triste situação brasileira, pode estar terrivelmente subnotificado.

Agora não poderemos falar apenas do COVID-19, mas de uma pandemia que ajusta elementos estranhos e agravamentos severos de condições políticas, econômicas e até naturais.

Os fatos que já não eram mais questionados tornaram-se irrelevantes no emaranhado de condições que se desenrolaram no vigésimo ano deste terceiro milênio. De repente o mundo começou a não acreditar mais em soluções construtivistas e se lançou em aventuras política e econômicas fora da normalidade. A multiplicação de temas colaterais passou a ser mais importante que os próprios fatos, e os fatos pararam de assombrar.

Uma pandemia, portanto, se instalou entre nós. Nela o COVID-19 é apenas um elemento soterrado dentro dos efeitos colaterais de uma política que não se alinhou para enfrentá-lo. O caminho fácil foi apresentado. A cura apareceu milagrosamente nas mãos de governos que se negaram, deliberadamente, a fazer uma campanha educativa e a seguir a estrada da ciência. Apareceu, então uma má ciência! Uma ciência aplicada que faz experimento com a vida humana, mas este tipo de experiência já foi vetado pelos direitos humanos.

A pandemia se espalha numa grandeza assombrosa, mas ela mesma não assombra. A pandemia é todo o descaso pela vida, e, até o próprio vírus parece menor ante a total falta de planejamento para a economia, para a saúde, para a educação, para a justiça. A pandemia, então, é total, e assim como fez agigantar o vírus, que matou mais aqui do que em qualquer outro lugar, ainda está em evolução, e tende a alcançar as profundezas de uma luta pela alma do povo brasileiro.

Diante dos 500 mil temos que cultivar uma estética diferente. Uma estética que se assombra com a perda sem sentido de qualquer vida, mesmo que seja apenas uma.

Dom Lindomar Rocha Mota
Bispo de São Luís de Montes Belos (GO)